Uma discussão bastante atual, ouvida, repetida e pronunciada tanto nos meios intelectuais como nos de cultura de massa, coloca em oposição duas premissas que atingem intimamente os valores do indivíduo, sobre o que seria mais importante para este em sua relação com a sociedade, modificando e transformando a famosa incógnita shakespeariana e dando a ela uma roupagem pós-moderna extemporânea: “ser” ou “ter”? Eis a questão!
Para começar a desenvolver essa discussão, entraria em campo primeiramente aquilo que o indivíduo consideraria fundamental para a construção de seu “ser social”, se aquilo que possui (nesse aspecto, se mencionaria suas aquisições e posses materiais, mercadorias, bens de consumo, etc.) ou aquilo que ele é de fato (valores imateriais como conduta, caráter, sentimentos, preceitos éticos, etc). O corrente e comum que se ouve como resposta quando mencionado tal questionamento – tanto para aqueles que se põe a criticar os costumes e padrões socialmente estabelecidos, como por aqueles que de maneira acrítica pegam carona naquilo que é ou acaba por transformar-se em senso comum – seria afirmar a predominância absoluta do “ser” sobre o “ter”. A partir desta afirmação é possível surgir então um novo questionamento: O que determinaria o “ser”? Uma das afirmações básicas de Karl Marx dentro de seu pensamento se opôs radicalmente contra o idealismo dominante do século XIX. Nesse sentido o filósofo afirma que: "Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas é seu ser social que determina sua consciência", contrariando o que afirmava Hegel e outros filósofos idealistas. Então seria um erro primário e de certa forma sofismático, correndo-se o risco de um retorno ao pensamento idealista superado por Karl Marx, concordar com o senso comum de que o “ser” seria mais importante que o “ter” sem antes fazermos uma análise crítica dessas duas condições e como uma age sobre a outra. Obviamente que na sociedade capitalista o “ter” lamentavelmente transformou-se em um conceito negativo, que passa a ser entendido quase que exclusivamente numa premissa de conotação pejorativa e fetichista do capitalismo, onde os objetos de consumo adquirem um valor autônomo, uma aura sobrenatural então se instala sobre eles fazendo que seu valor real não tenha origem ou explicação racional e sim absurda, assim como o desejo massivo (numa forma nefasta de consciência coletiva) de se consumir essas determinadas mercadorias.
No entanto, se analisado sob outras perspectivas, o fator “ter” pode significar e esclarecer muitas coisas nesse questionamento. Com pouco esforço podemos chegar facilmente a conclusão através de uma formulação elementar de que para um indivíduo conseguir um nível excelente de autonomia, é preciso dentre outras coisas, “ter” um bom nível de educação, estímulos cognitivos e conhecimentos de diversas áreas (que lhe são introjetados a partir do meio externo). Ora, para se atingir esse estágio, este mesmo indivíduo deve “ter” (ou ter tido) condições materiais favoráveis que proporcione esse desenvolvimento (por exemplo: bons livros, professores, acesso a diversas formas de manifestações culturais, boa alimentação, moradia, etc.). Concordando com isso, podemos afirmar então que o “ter” (no sentido de “ter” condições favoráveis) tem um papel fundamental na construção do “ser”. No entanto, se faz necessário ainda, que o “ser” se afirme como tal e transcenda o mero “existir” (condição objetiva de qualquer coisa real) tornando-se um “ser” de fato.
Dentro de uma perspectiva materialista histórico-dialética, surge então uma terceira premissa (quase sempre esquecida) capaz de transcender, suprimir e tornar inteligível a íntima e complexa relação e interpenetração das duas premissas citadas anteriormente: o “fazer”. Nesse caso, o “fazer” seria a atividade que legitimaria e afirmaria o “ser social". Ainda segundo Karl Marx, o trabalho e a realização por meio da práxis são as atividades humanas mais importantes. Sobre isso ele escreveu: “(...) uma verdade objetiva não é teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, o saber, a efetividade e o poder (...)” (Teses Contra Feuerbach). Aristóteles em uma análise ontológica, afirmou que o ser (em potência), só poderia se transformar em um ser em ato (real) mediante algum movimento, e nos dá como exemplo a semente que carrega em si (em potência) uma árvore, no entanto essa só se afirmará como árvore mediante o ato, o movimento de se “fazer” árvore.
Concordando com essas afirmações, vemos a necessidade do “ser” em se afirmar como tal, elevando-se de maneira sublime acima do mero “ter”, mas somente a partir de suas realizações, da práxis, do “fazer”, que seria intervir e modificar objetivamente a realidade, efetivando-se como um “ser" social pleno a partir e através de suas ações.
É, meu caro Thiago, ser é mais difícil do que ter. As pessoas trocaram seus valores por posses, se preocupam mais com o ter do que com o ser
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